Desde que foi lançado em novembro de 2020, o Pix desperta paixões, e não apenas em sentido figurado: além de ser um meio de instantâneo disponível 24 horas por dia e nos sete dias da semana, o Pix tem sido usado até para começar paqueras e reatar relacionamentos.
A popularidade alcançada pelo Pix em tão pouco tempo gerou igualmente “teorias conspiratórias”, que são espalhadas em redes sociais e correntes de aplicativos de mensagens. Para tranquilizar as pessoas, o Banco Central (BC) se esforça em desmontar informações falsas e esclarecer os fatos em suas páginas na internet.
Mas a desinformação chega também por outros meios, como em artigos de opinião, recomendando que o leitor evite o Pix com base em quatro argumentos equivocados. O primeiro é que o BC, por ter acesso a informações de pagamentos, estaria violando o sigilo bancário de todos os usuários do Pix.
A realidade é que o Banco Central, por ser o supervisor do sistema financeiro, pode ter acesso a informações detidas pelas instituições fiscalizadas. E o BC precisa das informações de pagamentos para garantir que cada transferência realizada (seja por cheque, cartão, TED ou Pix) chegue corretamente ao destino.
Isso quer dizer que o BC fica de olho em cada transferência e pode divulgar como bem entender as informações a que tem acesso? De forma alguma! O BC usa apenas as informações necessárias para exercer as competências que lhe foram atribuídas por lei.
Além disso, a Lei Complementar nº 105, de 2001, que trata do sigilo bancário, diz
claramente que o dever de sigilo tem que ser observado pelo BC “em relação às operações que realizar e às informações que obtiver no exercício de suas atribuições.”
A mesma lei complementar dispõe que o descumprimento desse dever de sigilo constitui crime. Qualquer servidor do BC que acesse indevidamente informações sigilosas ou que, por qualquer meio, promova ou possibilite a quebra de sigilo bancário fora das hipóteses legais autorizadas fica sujeito à pena de reclusão e ainda responde administrativa e civilmente pelo ilícito e pelos danos causados.
De modo semelhante, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) obriga o BC a garantir tratamento adequado a dados pessoais que sejam coletados ou armazenados para o cumprimento de suas obrigações legais, ficando seus agentes sujeitos à responsabilização em caso de uso indevido.
O segundo mito é que o BC faria parte do “Fisco” e usaria o Pix para saciar a “sede arrecadadora” do Estado. Na verdade, o BC não exerce nenhuma função arrecadadora, que fica a cargo das Fazendas federal, estaduais e municipais.
Cabe ao BC, isto sim, emitir a moeda soberana e garantir a estabilidade do seu poder de compra. O poder monetário do BC é, pois, bem diferente do poder tributário detido pelas autoridades fazendárias do país.
Assim, o Fisco não tem acesso à base de dados ou transações do Pix, da mesma forma que o BC não acessa informações protegidas por sigilo fiscal. Em ambos os casos, o acesso apenas ocorre por ordem judicial ou por compartilhamento de informação diante da presença de indícios da prática de ilícito.
O terceiro mito é que o Pix deveria ter sido deixado para a iniciativa privada, que tem maior aptidão para inovar. Contudo, para haver inovação em setores diversificados como o financeiro, é necessário não apenas criatividade e investimento, mas coordenação para alinhar interesses divergentes e evitar soluções monopolistas ou que ampliem desigualdades.
O exemplo da implementação dos pagamentos instantâneos nos Estados Unidos é ilustrativo. Como o banco central americano não assumiu a coordenação dos diferentes interesses em jogo, os grandes bancos desenvolveram e puseram em funcionamento o seu sistema, o RTP, deixando várias instituições de fora.
Os bancos menores e as “credit unions“, similares às nossas cooperativas de crédito, agora esperam que o Fed implemente o FedNow, possivelmente em 2023, para que possam oferecer pagamentos instantâneos a seus clientes. Até lá, uma simples transferência bancária pode demorar até quatro dias úteis para ser concluída.
O Pix foi, então, a forma que o BC encontrou para criar, sob uma perspectiva neutra, uma rede de pagamentos instantâneos segura, aberta a qualquer instituição, disponível 24 horas e relativamente barata.
O quarto e último mito é que o Pix seria gratuito para incentivar que os usuários transferissem informações pessoais ao BC. Muito embora a regulação do Pix vede a cobrança de tarifa para fazer ou receber um Pix em algumas situações, o Pix não é gratuito. Além de o BC poder buscar das instituições participantes do Pix o ressarcimento de custos, essas instituições estão autorizadas a cobrar tarifas dos usuários finais, especialmente empresas.
Ainda assim, vale relembrar: o BC somente tem acesso às informações necessárias para o exercício de suas atribuições legais e tem o dever de preservar o sigilo bancário e proteger dados pessoais, sob pena de punição severa.
Num mundo mais e mais digitalizado, em que cada passo que damos pode ser monitorado pelos aplicativos que temos no telefone celular, o debate sobre a proteção à intimidade é fundamental. No entanto, o debate perde muito de sua utilidade quando é dominado por notícias e análises alarmistas.
O Pix é uma ação adotada pelo BC para tornar os sistemas financeiro e de pagamentos cada vez mais robustos, eficientes e competitivos. Não há conspirações ou mitos que resistam a essa realidade.
Marcelo M. Prates é procurador do Banco Central e doutor em direito pela Duke University
https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/08/24/pix-mitos-e-verdades.ghtml